sábado, 1 de agosto de 2009

13 ou 103?

Difícil acreditar, mas neste mês (julho) eu vivenciei uma situação pelo menos peculiar. Estava em um estágio na enfermaria e, ao ver os novos pacientes admitidos, tive uma surpresa: um idoso de 103 anos estava em um dos leitos que eu iria ficar responsável. Diagnóstico principal: pneumonia. Ver alguém que ultrapassou os dois dígitos em um hospital público é muito raro, digno de um texto em sua homenagem, por isso esse blog me serve, pois aqui homenageio pessoas, situações e a vida.

Continuando a história, em um dos outros leitos estava internada uma situação infelizmente comum: garota jovem que, após estabilizada e não sofrer mais risco de vida, saiu da UTI e foi para a Enfermaria, justamente para um dos leitos que eu era responsável diariamente. Diagnóstico da garota: Intoxicação Exógena, ou seja, uso indisciplinado propositadamente de medicamentos e nesse caso com o intuito de suicidar-se... Idade: 13 anos. Logo lembrei-me do idoso: 13, 103, 13, 103, 13,... Tracei um paralelo imediato: a garota de 13 anos que, inconformada em não ter dinheiro para comprar sua roupa da quadrilha junina, tentou tirar a própria vida, enquanto que um senhor, ainda orientado (lúcido), estava lutando com a própria vida, pois 103 não era suficiente, já que ele desejava sim viver mais. Numa das visitas diárias que fiz à menina, perguntei-lhe, após ter adquirido seu confiança: "Se eu colocar o número 0 (Zero) no meio da sua idade, ou seja, entre o 1 e o 3, que número fica?". Após alguns demorados segundos, ela respondeu, com entusiasmo e cautela: "103!". Em seguida respondi: "Muito bem, é exatamente isso! E se eu lhe falar que eu estou com um paciente de 103 anos internado como você?!". Ela fez cara de espanto, expressiva e repetiu: "103?!". Concordei com a cabeça e pedi licença para retirar-me, deixando obviamente essa reflexão para ela fosforilar até o próximo dia. A partir de então ela começou a perguntar pelo idoso, diariamente: "Cadê o homem de 103 anos? Como ele está?". E eu respondia: "Hoje ele está melhor! Perguntou pela esposa, pelos filhos e disse que queria comer caldo de feijão, mas infelizmente teve que beber leite mesmo, era o que o cardápio do hospital disponibilizava". A garota, já melhor após ter quase morrido de insuficiência respiratória, ouvia-me atentamente, pois para ela e para mim também, viver 103 anos é algo incrível. Fiz uma nova pergunta para ela, essa mais difícil: "Se ele tem 103 anos, em que ano ele nasceu? Vou querer a resposta amanhã!". Após examiná-la e constatá-la que estava tudo bem com ela, retirei-me e continuei minhas andanças pela enfermaria.

No outro dia, uma novidade: a garota que ingeriu medicamentos em grande quantidade iria receber alta hospitalar, pois seu organismo de apenas 13 anos trabalhou de forma tão preciosa que a devolveu a saúde plena. Seus exames estavam completamente normais. Enquanto isso, os exames do idoso apresentavam, além da infecção de difícil controle (Pneumonia e enfisema pulmonar descompensado), as doenças insuficiências renal e cardíaca. Mesmo assim, o quadro clínico dele era estável. Retornando ao leito da garota - que não teve o bom senso de imaginar que o custo de seu internamento (pelo SUS) superou exponencialmente o valor de um simples vestido de festa junina - entrei em seu quarto e fui supreendido antes mesmo de dar bom dia: "1906! 1906!". Naquele instante, eu mesmo fiquei confuso, sem entender aquela expressão sem nexo, mas logo abri um sorriso e a parabenizei pela resposta correta! Depois soube que na verdade, ela não é só inteligente, mas bem experta também, pois quem fez o difícil cálculo de dimunir 103 de 2009 foi sua mãe. Após esse momento de descontração, adiantei a boa notícia: sua alta hospitalar. Ela ficou feliz, abriu um sorriso e assim fui preencher a papelada de sua alta, recomendando e solicitando dentre outras coisas acompanhamento psicológico. Enquanto isso, o idoso de 103 anos inicia uma piora súbita com quadro de hipoxemia (diminuição do oxigênio no sangue), mesmo com máscara de oxigênio de alto fluxo, e arritmia cardíaca. Ele já não estava mais orientado e não apresentava reação quando estimulado verbalmente. Não havia mais o que fazer por ele, apenas torcer para seu organismo frágil e calejado desse uma utópica volta por cima. Eu estava apreensivo, fiquei pensando cautelosamente em alguma saída, mas realmente restava apenas a angústia. Quando fui explicar para a mãe da garota sobre as recomendações pós-internação, a mãe disse: "Ela acabou de me dizer que se eu não lhe desse um vestido de São João tomaria o remédio de novo!". Permaneci atônito, sem expressar alguma alteração facial de frustração, e repeti algumas vezes a necessidade do acompanhamento psicológico. E fiz um paralelo entre essas duas pessoas tão distintas e por apenas um Zero, fizeram escrever esse texto.

Pensei:

A garota tem 13 anos. O idoso tem 103.
A garota nasceu em uma cidade. O idoso nasceu e ainda vivia no meio rural quando internou-se. A garota queria ir para uma quadrilha, mas precisava de dinheiro para o vestido, por isso tentou suicídio e assim fez o Governo (SUS) pagar uma nota preta por sua internação.
O idoso foi para dezenas de festas juninas e para ele uma festa a mais ou a menos não faria diferença alguma, além do que nunca havia sido internado (em 13 anos a garota deu um prejuízo ao SUS maior que os 103 anos de vida do idoso).
A garota tomou tranquilizantes e quase morreu, mas sobreviveu e recebeu alta. O idoso fumou muito durante sua vida, o que lhe conferiu enfisema pulmonar e facilitou seu problema de insuficiência respiratória, todavia ultrapassou bem os 100 anos.

E para finalizar: a garota vai para casa, porém antes mesmo disso acontecer, ela ameaçou a mãe de nova tentativa de suicídio. O idoso desejava veementemente apenas voltar ao seu lar, mas isso não foi possível, pois no mesmo dia que a garota foi para casa desinteressadamente, sem atentar para a nova oportunidade de vida que lhe foi dada, o idoso faleceu com parada-respiratória...

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