Difícil acreditar, mas neste mês (julho) eu vivenciei uma situação pelo menos peculiar. Estava em um estágio na enfermaria e, ao ver os novos pacientes admitidos, tive uma surpresa: um idoso de 103 anos estava em um dos leitos que eu iria ficar responsável. Diagnóstico principal: pneumonia. Ver alguém que ultrapassou os dois dígitos em um hospital público é muito raro, digno de um texto em sua homenagem, por isso esse blog me serve, pois aqui homenageio pessoas, situações e a vida.
Continuando a história, em um dos outros leitos estava internada uma situação infelizmente comum: garota jovem que, após estabilizada e não sofrer mais risco de vida, saiu da UTI e foi para a Enfermaria, justamente para um dos leitos que eu era responsável diariamente. Diagnóstico da garota: Intoxicação Exógena, ou seja, uso indisciplinado propositadamente de medicamentos e nesse caso com o intuito de suicidar-se... Idade: 13 anos. Logo lembrei-me do idoso: 13, 103, 13, 103, 13,... Tracei um paralelo imediato: a garota de 13 anos que, inconformada em não ter dinheiro para comprar sua roupa da quadrilha junina, tentou tirar a própria vida, enquanto que um senhor, ainda orientado (lúcido), estava lutando com a própria vida, pois 103 não era suficiente, já que ele desejava sim viver mais. Numa das visitas diárias que fiz à menina, perguntei-lhe, após ter adquirido seu confiança: "Se eu colocar o número 0 (Zero) no meio da sua idade, ou seja, entre o 1 e o 3, que número fica?". Após alguns demorados segundos, ela respondeu, com entusiasmo e cautela: "103!". Em seguida respondi: "Muito bem, é exatamente isso! E se eu lhe falar que eu estou com um paciente de 103 anos internado como você?!". Ela fez cara de espanto, expressiva e repetiu: "103?!". Concordei com a cabeça e pedi licença para retirar-me, deixando obviamente essa reflexão para ela fosforilar até o próximo dia. A partir de então ela começou a perguntar pelo idoso, diariamente: "Cadê o homem de 103 anos? Como ele está?". E eu respondia: "Hoje ele está melhor! Perguntou pela esposa, pelos filhos e disse que queria comer caldo de feijão, mas infelizmente teve que beber leite mesmo, era o que o cardápio do hospital disponibilizava". A garota, já melhor após ter quase morrido de insuficiência respiratória, ouvia-me atentamente, pois para ela e para mim também, viver 103 anos é algo incrível. Fiz uma nova pergunta para ela, essa mais difícil: "Se ele tem 103 anos, em que ano ele nasceu? Vou querer a resposta amanhã!". Após examiná-la e constatá-la que estava tudo bem com ela, retirei-me e continuei minhas andanças pela enfermaria.
No outro dia, uma novidade: a garota que ingeriu medicamentos em grande quantidade iria receber alta hospitalar, pois seu organismo de apenas 13 anos trabalhou de forma tão preciosa que a devolveu a saúde plena. Seus exames estavam completamente normais. Enquanto isso, os exames do idoso apresentavam, além da infecção de difícil controle (Pneumonia e enfisema pulmonar descompensado), as doenças insuficiências renal e cardíaca. Mesmo assim, o quadro clínico dele era estável. Retornando ao leito da garota - que não teve o bom senso de imaginar que o custo de seu internamento (pelo SUS) superou exponencialmente o valor de um simples vestido de festa junina - entrei em seu quarto e fui supreendido antes mesmo de dar bom dia: "1906! 1906!". Naquele instante, eu mesmo fiquei confuso, sem entender aquela expressão sem nexo, mas logo abri um sorriso e a parabenizei pela resposta correta! Depois soube que na verdade, ela não é só inteligente, mas bem experta também, pois quem fez o difícil cálculo de dimunir 103 de 2009 foi sua mãe. Após esse momento de descontração, adiantei a boa notícia: sua alta hospitalar. Ela ficou feliz, abriu um sorriso e assim fui preencher a papelada de sua alta, recomendando e solicitando dentre outras coisas acompanhamento psicológico. Enquanto isso, o idoso de 103 anos inicia uma piora súbita com quadro de hipoxemia (diminuição do oxigênio no sangue), mesmo com máscara de oxigênio de alto fluxo, e arritmia cardíaca. Ele já não estava mais orientado e não apresentava reação quando estimulado verbalmente. Não havia mais o que fazer por ele, apenas torcer para seu organismo frágil e calejado desse uma utópica volta por cima. Eu estava apreensivo, fiquei pensando cautelosamente em alguma saída, mas realmente restava apenas a angústia. Quando fui explicar para a mãe da garota sobre as recomendações pós-internação, a mãe disse: "Ela acabou de me dizer que se eu não lhe desse um vestido de São João tomaria o remédio de novo!". Permaneci atônito, sem expressar alguma alteração facial de frustração, e repeti algumas vezes a necessidade do acompanhamento psicológico. E fiz um paralelo entre essas duas pessoas tão distintas e por apenas um Zero, fizeram escrever esse texto.
Pensei:
A garota tem 13 anos. O idoso tem 103.
A garota nasceu em uma cidade. O idoso nasceu e ainda vivia no meio rural quando internou-se. A garota queria ir para uma quadrilha, mas precisava de dinheiro para o vestido, por isso tentou suicídio e assim fez o Governo (SUS) pagar uma nota preta por sua internação.
O idoso foi para dezenas de festas juninas e para ele uma festa a mais ou a menos não faria diferença alguma, além do que nunca havia sido internado (em 13 anos a garota deu um prejuízo ao SUS maior que os 103 anos de vida do idoso).
A garota tomou tranquilizantes e quase morreu, mas sobreviveu e recebeu alta. O idoso fumou muito durante sua vida, o que lhe conferiu enfisema pulmonar e facilitou seu problema de insuficiência respiratória, todavia ultrapassou bem os 100 anos.
E para finalizar: a garota vai para casa, porém antes mesmo disso acontecer, ela ameaçou a mãe de nova tentativa de suicídio. O idoso desejava veementemente apenas voltar ao seu lar, mas isso não foi possível, pois no mesmo dia que a garota foi para casa desinteressadamente, sem atentar para a nova oportunidade de vida que lhe foi dada, o idoso faleceu com parada-respiratória...
Continuando a história, em um dos outros leitos estava internada uma situação infelizmente comum: garota jovem que, após estabilizada e não sofrer mais risco de vida, saiu da UTI e foi para a Enfermaria, justamente para um dos leitos que eu era responsável diariamente. Diagnóstico da garota: Intoxicação Exógena, ou seja, uso indisciplinado propositadamente de medicamentos e nesse caso com o intuito de suicidar-se... Idade: 13 anos. Logo lembrei-me do idoso: 13, 103, 13, 103, 13,... Tracei um paralelo imediato: a garota de 13 anos que, inconformada em não ter dinheiro para comprar sua roupa da quadrilha junina, tentou tirar a própria vida, enquanto que um senhor, ainda orientado (lúcido), estava lutando com a própria vida, pois 103 não era suficiente, já que ele desejava sim viver mais. Numa das visitas diárias que fiz à menina, perguntei-lhe, após ter adquirido seu confiança: "Se eu colocar o número 0 (Zero) no meio da sua idade, ou seja, entre o 1 e o 3, que número fica?". Após alguns demorados segundos, ela respondeu, com entusiasmo e cautela: "103!". Em seguida respondi: "Muito bem, é exatamente isso! E se eu lhe falar que eu estou com um paciente de 103 anos internado como você?!". Ela fez cara de espanto, expressiva e repetiu: "103?!". Concordei com a cabeça e pedi licença para retirar-me, deixando obviamente essa reflexão para ela fosforilar até o próximo dia. A partir de então ela começou a perguntar pelo idoso, diariamente: "Cadê o homem de 103 anos? Como ele está?". E eu respondia: "Hoje ele está melhor! Perguntou pela esposa, pelos filhos e disse que queria comer caldo de feijão, mas infelizmente teve que beber leite mesmo, era o que o cardápio do hospital disponibilizava". A garota, já melhor após ter quase morrido de insuficiência respiratória, ouvia-me atentamente, pois para ela e para mim também, viver 103 anos é algo incrível. Fiz uma nova pergunta para ela, essa mais difícil: "Se ele tem 103 anos, em que ano ele nasceu? Vou querer a resposta amanhã!". Após examiná-la e constatá-la que estava tudo bem com ela, retirei-me e continuei minhas andanças pela enfermaria.
No outro dia, uma novidade: a garota que ingeriu medicamentos em grande quantidade iria receber alta hospitalar, pois seu organismo de apenas 13 anos trabalhou de forma tão preciosa que a devolveu a saúde plena. Seus exames estavam completamente normais. Enquanto isso, os exames do idoso apresentavam, além da infecção de difícil controle (Pneumonia e enfisema pulmonar descompensado), as doenças insuficiências renal e cardíaca. Mesmo assim, o quadro clínico dele era estável. Retornando ao leito da garota - que não teve o bom senso de imaginar que o custo de seu internamento (pelo SUS) superou exponencialmente o valor de um simples vestido de festa junina - entrei em seu quarto e fui supreendido antes mesmo de dar bom dia: "1906! 1906!". Naquele instante, eu mesmo fiquei confuso, sem entender aquela expressão sem nexo, mas logo abri um sorriso e a parabenizei pela resposta correta! Depois soube que na verdade, ela não é só inteligente, mas bem experta também, pois quem fez o difícil cálculo de dimunir 103 de 2009 foi sua mãe. Após esse momento de descontração, adiantei a boa notícia: sua alta hospitalar. Ela ficou feliz, abriu um sorriso e assim fui preencher a papelada de sua alta, recomendando e solicitando dentre outras coisas acompanhamento psicológico. Enquanto isso, o idoso de 103 anos inicia uma piora súbita com quadro de hipoxemia (diminuição do oxigênio no sangue), mesmo com máscara de oxigênio de alto fluxo, e arritmia cardíaca. Ele já não estava mais orientado e não apresentava reação quando estimulado verbalmente. Não havia mais o que fazer por ele, apenas torcer para seu organismo frágil e calejado desse uma utópica volta por cima. Eu estava apreensivo, fiquei pensando cautelosamente em alguma saída, mas realmente restava apenas a angústia. Quando fui explicar para a mãe da garota sobre as recomendações pós-internação, a mãe disse: "Ela acabou de me dizer que se eu não lhe desse um vestido de São João tomaria o remédio de novo!". Permaneci atônito, sem expressar alguma alteração facial de frustração, e repeti algumas vezes a necessidade do acompanhamento psicológico. E fiz um paralelo entre essas duas pessoas tão distintas e por apenas um Zero, fizeram escrever esse texto.
Pensei:
A garota tem 13 anos. O idoso tem 103.
A garota nasceu em uma cidade. O idoso nasceu e ainda vivia no meio rural quando internou-se. A garota queria ir para uma quadrilha, mas precisava de dinheiro para o vestido, por isso tentou suicídio e assim fez o Governo (SUS) pagar uma nota preta por sua internação.
O idoso foi para dezenas de festas juninas e para ele uma festa a mais ou a menos não faria diferença alguma, além do que nunca havia sido internado (em 13 anos a garota deu um prejuízo ao SUS maior que os 103 anos de vida do idoso).
A garota tomou tranquilizantes e quase morreu, mas sobreviveu e recebeu alta. O idoso fumou muito durante sua vida, o que lhe conferiu enfisema pulmonar e facilitou seu problema de insuficiência respiratória, todavia ultrapassou bem os 100 anos.
E para finalizar: a garota vai para casa, porém antes mesmo disso acontecer, ela ameaçou a mãe de nova tentativa de suicídio. O idoso desejava veementemente apenas voltar ao seu lar, mas isso não foi possível, pois no mesmo dia que a garota foi para casa desinteressadamente, sem atentar para a nova oportunidade de vida que lhe foi dada, o idoso faleceu com parada-respiratória...
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